A memória surpreende pela não confiabilidade. Geralmente, não recordamos o que desejamos e lembramos o que queremos esquecer. E nesse mistério humano tão complexo quanto o entendimento das divindades, ficamos, geralmente entre o sono e o sonho, com os apontamentos inconscientes na/da consciência.
No ir e vir da mente em busca do abraço morfético, me veio uma lembrança de um tempo em que o ceticismo era menor e em que, talvez, deus fosse mais presente. Durante cerca de 3 anos, participei de um coral que tinha por função principal animar as missas aos domingos pela manhã.
O grupo de cânticos religiosos era formado por pessoas de faixa etária bem acima da minha. Na verdade, o grupo era da “terceira idade”. Jovens, na idade, éramos apenas 6 ou 7. Eu e mais dois amigos (violão, baixo e bateria) e mais 3 meninas que cantavam. É claro que éramos seis, a oscilação se deu pela tentativa de evitar a referência novelística.
Ali, passei bons momentos e outros, nem tanto. A lembrança que povoou minha cabeça na última noite, infelizmente, está mais para o segundo grupo do que para o primeiro. Lembrei-me de um dos integrantes do coral e de sua dura luta pela vida diante de uma doença crônica.
Em um domingo, após a celebração da missa, todos os integrantes do coral foram lhe fazer uma visita. Ele morava em uma casa humilde, em cima de uma fábrica de pipas em que trabalhava. Para nossa surpresa, vivia sozinho e contava apenas com a solidariedade dos vizinhos. Nessa época, acredito eu, a fé começava a me abandonar ou eu passava a perceber que ter fé não era o meu forte, nem meu fraco.
Lembrei também que, por alguns instantes, fiquei sozinho a seu lado. Trocamos poucas palavras. Nunca fui muito bom com as palavras, ainda mais diante da morte, da doença ou de qualquer outro obstáculo da vida. As palavras faltam. O ouvido cuida para que olhos não externem a compreensão da ação inexorável do destino. Sendo assim, ajo como se não fosse, como se não pensasse, como se não existisse.
Entre uma ou outra palavra balbuciada, o senhor me perguntou por que eu estava ali, por que me preocupava com ele? Por que àquela hora da manhã eu não estava curtindo minha idade? Pensei por alguns instantes. Não sabia efetivamente o que dizer. Poderia dizer que era pela presença divina (sabia que não era). E de supetão, sem medir o impacto das palavras, disse que o que me levava até lá era o fato de sermos iguais: eu, ele e todos os nossos companheiros de canto.
Não sei que tipo de sensação estas palavras causaram. Contudo, descobri na insônia de ontem que me lembro de algumas palavras ditas por ele após minha resposta. – “Meu filho! Quando se vive só e se chega aos 70 e tantos, ter a certeza de que estaremos com deus é um detalhe. O que importa na vida é saber se a maneira como vivemos permitiu que deus estivesse conosco. E deus está aqui. E o que é deus? A juventude deve te fazer perguntar isso. Deus é a visita de jovens a um homem velho, doente e solitário. A visita a um homem velho e solitário é amor ao próximo, o mandamento máximo”.
As palavras ditas podem ter sido diferentes, mas o essencial delas está aí. Não sei quando a fé me abandonou... não tenho memória disso. No entanto, talvez tenha sido neste encontro que entendi e internalizei que o outro sou eu e que ainda que o amor partilhado entre os irmãos não seja divino, ele pode despertar sentimentos comuns, nos levar à descoberta da necessidade de luta por alguém além de nós. Fazer-se igual no canto de alegria ou no entendimento da morte é questão primordial para que tenhamos um mundo mais justo, sensível e fraterno.
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