sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Eu, eu mesmo e o funk


O ano devia ser 1994 ou 1995. Digo que devia, pois este relato é um vasculhar da/na memória e algumas informações podem não corresponder ao tempo apontado, o que não significa ser preenchido por inverdades, mas sim por problemas de precisão crônica e cronológica. Naquele ano, depois de soltar pipa ou jogar bola, eu corria pra casa, preparava a fita cassete de áudio para gravar os meus raps preferidos e, depois, estourar o alto-falante com a repetição ininterrupta (meia hora de cada lado) das canções que falavam de mim, para mim, comigo. Gravava algumas montagens também, mas confesso que sempre gostei do verbo, não das peripécias dos Djs, embora ouvisse o Malboro.
Várias eram as duplas de MCs admiradas. Claudinho e Buchecha, com o rap do Salgueiro e Nosso sonho, música em que aprendi a composição geográfica e sociológica da pobreza, muito antes do “Subúrbio”, do Chico Buarque. Com os meninos de São Gonçalo, entendi que a pobreza do meu bairro, Austin – Nova Iguaçu, era igual à deles lá do outro lado da ponte. Isso obviamente não estava na minha alçada intelectual daquele momento, porque eu nem sabia que existia algo além da Baixada Fluminense. Bob Run e seu “Silva”, que equivale ao meu “Costa” e a tantos outros sobrenomes por aí, também fazia parte do rol de cantores prediletos. Mc Marcinho era “solitário” e top. Coelho e Dinho, Márcio e Goró, Willian e Duda do Borel, Danda e Taffarel, Cidinho e Doca, Coiote e Rapozão, Mc Cacau, e tantos outros.
Quem conhece o funk deve se perguntar neste momento da leitura: “- E os Mcs Junior e Leonardo”? Deixei-os para um parágrafo exclusivo por uma questão paradoxal. Esses MCs fizeram os dois raps de que eu mais gostava: “O rap das armas” e o “Endereço dos bailes”. Confesso que passei boa parte da adolescência querendo conhecer cada baile mencionado na letra, ainda que não tivesse ido nem ao baile do Ferroviário de Austin, pois meus pais não deixavam. Segundo os coroas, o baile funk era o local do proibido, que não deveria ser frequentado por “pessoas de bem”. O paradoxo, a relação de amor e ódio – coisa de fã –, passa a existir em 1995 quando os MCs resolvem homenagear o flamengo, com o “rap do centenário”. Como sou vascaíno desde sempre, considerei este fato uma traição imperdoável. Fiquei furioso, apaguei as gravações que tinha de suas canções e procurei substituí-los. Amor morto, amor posto. Não permiti que ficassem na memória, fui ouvir Nélio e Espiga, com o “rap da lembrança”.
Nesta época, tínhamos, no Rio de Janeiro, duas ou três rádios com programas de Funk diários, o Funk era mídia e aparecia constantemente na Globo, no programa da Xuxa. Os MCs estavam sempre lá. E por essa exposição, uma vez perguntei para minha professora de português o motivo pelo qual em nossas aulas e provas jamais vimos nenhum traço do Funk. A resposta foi taxativa: “- Isso não é cultura”. Muitas foram as vezes em que ouvi isso. Até que internalizei. Em cada ambiente “sério” em que entrei e que frequentei, sempre diziam que o funk não tinha espaço por ser uma espécie de subcultura, algo inferior, coisa de favelado. E foi assim que fui me afastando do funk e me adaptando ao que era considerado alta cultura. Aliás, tudo era cultura: samba, rock, sertanejo, música religiosa, forró, menos o funk. Meu diálogo com minha professora se deu na quinta ou sexta série do ensino fundamental. No ensino médio, já não ouvia mais funk; na graduação em Letras, obviamente não ouvia nem um rapzinho para contar história. E assim fui me tornando um estudante exemplar. Sem perceber, eu não me afastava do funk, eu me afastava de mim.
No último período de minha graduação, obrigatoriamente tínhamos que cursar a disciplina “prática de Ensino”. Nesta disciplina prático-teórica, lemos Paulo Freire e sua concepção de ensino contextualizado, sua “palavramundo”. Lemos também Magda Soares, Marcos Bagno, dentre outros sociolinguistas que afirmam que o ensino de língua materna deve partir da experiência, do mundo, do capital simbólico trazido pelo corpo discente. Em suma, a bagagem do aluno não poderia ser extraviada.
Diferentemente do que se afirma nos meios acadêmicos, o meu estágio como/para professor mostrou que na prática a teoria é outra. A professora regente excluía o contexto, ensinava gramática de modo mecânico, não sabia o nome dos alunos, os tratava literalmente como números. Vale ressaltar que o estágio ocorreu em uma escola que tinha como público crianças moradoras do Complexo da Maré. Esquecer o contexto em que aquelas crianças estavam inseridas era só mais uma violência simbólica cometida em relação àqueles indivíduos já tão marginalizados pela sociedade. O ápice do meu descontentamento como estagiário-observador se deu em uma aula em que a professora apresentou uma canção do Chico Buarque para mostrar os elementos da comunicação. A aula e o material seriam perfeitos se respeitassem o contexto. As crianças tinham problemas sérios de leitura, o que inviabilizaria toda e qualquer possibilidade de apreensão de conceitos abstratos. Foi aí, e diante da minha iminente aula-teste (eu era obrigado a dar quatro aulas-teste antes de minha prova de aula), que reencontrei o Funk.
De modo ousado e contra a vontade da professora, ainda que ela tenha pseudamente consentido, fiz uma pequena e rápida pesquisa com os alunos. Duas perguntas em uma: - “Quem ouvia funk e quem tinha músicas de funk nos aparelhos de celular ou MP3?”. Dos 37 alunos do 5º ano, apenas 3 não tinham e nem ouviam funk, a não ser o funk gospel. A partir disso, montei minha primeira aula-teste. Os textos-base para a aula foram o “Rap do Silva” e “Dako é bom”, da Tati Quebra-barraco. A professora regente temia que a aula virasse um baile funk, o que inevitavelmente aconteceu. Os alunos disseram que o rap era chato e música de velho, embora um deles tenha dito que aquilo era um clássico e que, portanto, merecia respeito. Eles adoraram o funk da Tati. Fizemos a leitura das letras, expliquei para eles o jogo linguístico, a ambiguidade da segunda canção, o que acontece muito no forró e, de uma maneira geral, na música popular brasileira. E por isso, dizer que é pornográfico, que é indecente, é uma questão preconceituosa. Disse a eles que essas palavras se devem ao fato de o funk ser de onde é, e ser feito por quem o faz. Eles entenderam e gostaram. Depois... fizemos a leitura do “Rap do Silva”, a fim de realizarmos a comparação entre estilos e letras. Alguns mais avançados na compreensão e leitura do texto disseram que na favela é assim mesmo (como diz a letra). Na favela, ninguém é respeitado. Ali, todo mundo é Silva, pois pode “levar um tiro, quando sai para trabalhar, para se divertir, para estudar”. O objetivo da aula foi alcançado, pois os alunos perceberam que o funk também é protesto, também é voz de denúncia, perceberam no Funk que a vida dura na/da favela é um problema social.
Após essa aula de/com o Funk, nunca mais fui o mesmo. A emoção daquele encontro, daquela interação com a turma, que antes me jogava bolinha de papel, me chamava de X-9, por ser um corpo estranho, foram fundamentais para minha formação como professor, cargo que passei a exercer oficialmente (dou aulas em cursinhos comunitários desde 2001) em 2006. De lá pra cá, muita coisa mudou, fiz mestrado, doutorado, dei aula em universidade, fui aprovado em dois ou três concursos públicos, trabalhei em duas escolas do Estado. Hoje trampo em uma escola técnica da rede federal, em que tenho um projeto de literatura marginal (com enfoque nas produções da periferia: funk, rap, poesia e prosa). Embora muitas mudanças tenham acontecido, há algo que mudou quase nada: a marginalização do Funk.
O estilo musical – que "quando toca, ninguém fica parado" – ainda é estigmatizado, mesmo que tenha cartaz na novela das 9, mesmo que apareça diariamente em comerciais de TV, mesmo que faça participação especial nos programas televisivos. O Funk, mesmo que tenha sido elevado a patrimônio cultural, ainda é visto como algo menor. O Funk ainda é motivo de chacota em aulas de língua portuguesa ou em outras disciplinas que envolvem cultura. Enfim, o funk continua sendo visto, de modo óbvio por sua relação felizmente indissociável com quem o produz e em que local é produzido, como um subproduto cultural. E é por isso que continuo, em minhas aulas, tocando o Mc Marcinho; que, em meu material didático, continuo dedicando um espaço reservado e significativo para as composições do Cidinho e Doca, do Bob Run; que, em minhas atividades avaliativas, os Racionais aparecem como texto provocador e motivador. É necessário ter em mente que excluir o Funk é excluir o aluno que o ouve, que o faz. Sendo assim, enquanto não houver igualdade e respeito, não viveremos uma educação e uma sociedade justas. Pra finalizar, encerro com um dos melhores raps que já ouvi e ouso comparar com “Agoniza mas não morre”, pois personifico o funk (negro) que implora igualdade.

Eu só imploro a igualdade pra viver, doutor
No meu Brasil
Que o negro construiu
A injustiça vem do asfalto pra favela
Há discriminação à vera
Chegam em cartão postal
Em outdoor a burguesia nos revela
Que o pobre da favela tem instinto marginal
E o meu povo quando desce pro trabalho
Pede a Deus que o proteja
Dessa gente ilegal, doutor
Que nos maltrata e que finge não saber
Que a guerra na favela é um problema social

Um abraço a quem resiste e não tem vergonha de ser o que é. Não quero dizer que é necessário excluir ou esquecer outras manifestações culturais e musicais. Este não é o nosso desejo. O que está em voga aqui é o respeito a toda e qualquer manifestação cultural, à diversidade, ao estilo, ao gênero, ao ser humano e sua produção. É urgente abandonar a hipocrisia que assevera que somos um país multi ou pluricultural, quando, na verdade, o que vemos por aí é a homogeneização da cultura, da língua, do poder.

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