quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Caminhamos

Nem todos os sonhos são publicáveis.
nem todas as verdades, verdadeiras.
nem todos os desejos, desejáveis.
nem tudo o que se diz é pensado.
nem tudo o que se pensa é dito.
nem tudo o que se projeta é realizado.
e assim caminhamos.

Retrato do peito

retrato do peito
a tristeza é imanente...
não invade, por ser própria
do interior
por vezes, a vejo...
converso, driblo,
me escondo, mas
como furacão que se forma
sem previsão, atropela-me
lança-me ao chão
resignado... choro.
ouço o silêncio.
silencio...
e volto... para dentro
sem me ouvir,
percebo que sou homem
que sou fraco...
não rezo,
porque é...
sempre foi...
será...
triste.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Eu, eu mesmo e o magistério

No último dia 15 de outubro, comemoramos (ou não) o dia do professor. Recebi algumas manifestações de carinho através de mensagens, publicações nesta linha do tempo e muitas marcações em “posts” genéricos (aqueles automáticos que permitem lembrar sem a necessidade de escrevermos um texto e não darmos conta do sentimento, afinal de contas as palavras vão e o que sentimos fica).
Como professores, sabemos que afetamos nossos alunos. Alguns se lembrarão de nós como possíveis transformadores e inspiração para suas carreiras acadêmicas e profissionais. Outros farão questão de nos esquecer por motivos variados. Assim é a vida. Não há possibilidade de agradar a todos que passam por nós nas salas de aula da vida. Contudo, o que não pode haver é a indiferença, o pior dos comportamentos.
Dentro das várias mensagens, havia muitas referências que, sinceramente, faço questão de negar. A negação se deve ao fato de eu não querer nada além daquilo que pertence ao meu ofício. Não quero ter o salário de um deputado. Não quero ter o prestígio de um jogador de futebol. Não quero ter privilégios. Não quero ser o único a não ajoelhar diante do imperador. Não quero ter as outras profissões vinculadas exclusivamente a mim. Não quero ser resumido a piadas ou lugares-comuns como insatisfação salarial, vocação e missão.
À moda de Manuel Bandeira e sua “nova poética”, quero apenas condições básicas de trabalho; possibilidade de construir aulas transformadoras sem a patrulha ideológica; desejo também ver nos espaços educacionais o respeito entre os docentes dos diversos níveis, uma realidade bem distante, pois é muito comum vermos o tratamento preconceituoso sofrido pelos professores da Educação infantil e do Ensino Fundamental. Em uma espécie de antropofagia “magisterial”, professores do nível superior desprezam os do nível médio que desprezam os do nível fundamental; quero também ver o respeito aos pedagogos, e o fim das piadinhas de que “quem não sabe, critica” ou “é fácil falar quando não se está em sala de aula”; quando veremos a formação desses colegas respeitada?
Como é pertinente a meu ser, sempre tendo a observar o copo meio vazio, não vejo muitos motivos para comemorarmos a atuação no magistério. É difícil comemorar ou fazer festa, quando vem à mente que muitos colegas de profissão trabalham dois turnos e recebem menos do que UM SALÁRIO MÍNIMO; que muitos colegas de profissão são agredidos todos os dias física e simbolicamente; que houve um corte significativo das verbas do programa de formação docente; que todos os dias as licenciaturas são massacradas e ameaçadas de fechar; que muitos colegas da rede particular exercem sua profissão sob ameaça constante de demissão, caso não façam o jogo quase sempre clientelista da educação privada; que há professores que trabalham mais de 60 tempos por semana a fim de ter um rendimento mensal razoável; que há professores que foram espancados, humilhados e presos por manifestarem sua insatisfação com os rumos e a qualidade dos serviços educacionais oferecidos pelo Estado a seus contribuintes. Enfim... há muito mais motivos para protestarmos do que para festejarmos.
Peço desculpas por este tom discursivo pautado pelo niilismo e agradeço profundamente todas as mensagens recebidas. Espero que entendam as palavras ditas aqui e que permaneçam na luta política e pedagógica.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Eu, eu mesmo e o futebol

O futebol carioca continua protagonizando o horror. Contribui significativamente, a cada notícia publicada, para as goleadas sofridas pelo Brasil. A divulgação do regulamento do Cariocão-2016 é uma vergonha institucionalizada. Vasco e Botafogo foram beneficiados em questões que são absolutamente nada. Mando de campo, lado de torcida. Este tipo de problema está direta e claramente ligado ao presidente cruzmaltino, Eurico Miranda. A FFERJ, há tempos, é um feudo. E ninguém, absolutamente ninguém se levanta contra isso.

Teoricamente Flamengo e Fluminense estão rompidos com a Federação de Futebol do Rio. Apenas teoricamente. Aqueles que são entusiastas do modelo de Ligas e do futebol moderno acreditam que a dupla fla-flu está se posicionando contra a Federação, ao participarem do campeonato dos pontos cardeais. Seus presidentes não estão preocupados com o campeonato carioca, estão preocupados com verba de patrocínio, com cotas de televisão. Se realmente estivessem a fim de brigarem pelo futebol carioca, buscariam meios de minar a administração de Rubem Lopes e isolar Eurico Miranda. Não é isso que querem. Fortalecem uma liga sem identidade, e sepultam, com a omissão, o futebol do Rio. Todos os políticos do futebol estão acuados. A cúpula da FIFA está ruindo. E os baluartes do progresso o que fazem para combater a CBF? O que fazem para auxiliar os clubes pequenos formadores de jogadores para o futebol brasileiro? Em vez de lutarem contra a CBF, vão lá pedir a benção do Del Nero, outra vergonha.

Antes que me acusem de euriquista ou algo parecido, gostaria de apelar para a memória. Algum torcedor que lê este texto lembra de um gol de título de quaisquer desses campeonatos inventados para suprimir os estaduais? Claro que não. Nem mesmo se este torneio desse uma vaga para a Libertadores. No último jogo do Flamengo, o lateral direito do Urubu fez um golaço de falta, o que ativou a memória dos flamenguistas que recordaram o gol do Pet em 2001. O gol do Pet foi uma espécie de forra do flamengo em relação ao gol do Cocada. No fim, sofrido, emocionante, que deu frio na barriga. Menos na do Renato Gaúcho que, se o frio vier, usa a barriga para empurrá-lo. E por falar em empurrão, quem esquece aquele empurrãozinho dado pelo Maurício, do Botafogo, no Leonardo, do Flamengo?

Estas são algumas memórias que guardo dos Estaduais. Algumas docemente agradáveis; outras extremamente intragáveis. Contudo, memórias, lembranças, que estão ligadas ao fato de terem ocorrido nos estaduais, o que simboliza zoação na escola, no trabalho, no bar. Sempre há um vizinho torcedor do rival. Dificilmente há um vizinho torcedor de um time de um dos pontos cardeais. O Estadual do Rio é muito mais do que um campeonato para tirar o peso das pernas causado pela pré-temporada; é muito mais do que uma fase de testes para o campeonato brasileiro; já foi muito mais do que a Libertadores da América.


É necessário lembrar que muitos dos que brigam pela criação de Ligas (pela salvação do futebol brasileiro) são os mesmos que contribuem para elitização do futebol, que não contribuem para a presença da torcida de seu time no estádio, que estão preocupados com o número de pacotes de première vendidos, que concordam com a realização de jogos às 22h, que vendem o mando de campo dos jogos em casa. Nem tudo é dinheiro. Futebol é paixão. E todos estes, que aí estão, matam um pouco por dia o sentimento do carioca por seu time, por seu campeonato, pelo futebol.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Eu, eu mesmo e o funk


O ano devia ser 1994 ou 1995. Digo que devia, pois este relato é um vasculhar da/na memória e algumas informações podem não corresponder ao tempo apontado, o que não significa ser preenchido por inverdades, mas sim por problemas de precisão crônica e cronológica. Naquele ano, depois de soltar pipa ou jogar bola, eu corria pra casa, preparava a fita cassete de áudio para gravar os meus raps preferidos e, depois, estourar o alto-falante com a repetição ininterrupta (meia hora de cada lado) das canções que falavam de mim, para mim, comigo. Gravava algumas montagens também, mas confesso que sempre gostei do verbo, não das peripécias dos Djs, embora ouvisse o Malboro.
Várias eram as duplas de MCs admiradas. Claudinho e Buchecha, com o rap do Salgueiro e Nosso sonho, música em que aprendi a composição geográfica e sociológica da pobreza, muito antes do “Subúrbio”, do Chico Buarque. Com os meninos de São Gonçalo, entendi que a pobreza do meu bairro, Austin – Nova Iguaçu, era igual à deles lá do outro lado da ponte. Isso obviamente não estava na minha alçada intelectual daquele momento, porque eu nem sabia que existia algo além da Baixada Fluminense. Bob Run e seu “Silva”, que equivale ao meu “Costa” e a tantos outros sobrenomes por aí, também fazia parte do rol de cantores prediletos. Mc Marcinho era “solitário” e top. Coelho e Dinho, Márcio e Goró, Willian e Duda do Borel, Danda e Taffarel, Cidinho e Doca, Coiote e Rapozão, Mc Cacau, e tantos outros.
Quem conhece o funk deve se perguntar neste momento da leitura: “- E os Mcs Junior e Leonardo”? Deixei-os para um parágrafo exclusivo por uma questão paradoxal. Esses MCs fizeram os dois raps de que eu mais gostava: “O rap das armas” e o “Endereço dos bailes”. Confesso que passei boa parte da adolescência querendo conhecer cada baile mencionado na letra, ainda que não tivesse ido nem ao baile do Ferroviário de Austin, pois meus pais não deixavam. Segundo os coroas, o baile funk era o local do proibido, que não deveria ser frequentado por “pessoas de bem”. O paradoxo, a relação de amor e ódio – coisa de fã –, passa a existir em 1995 quando os MCs resolvem homenagear o flamengo, com o “rap do centenário”. Como sou vascaíno desde sempre, considerei este fato uma traição imperdoável. Fiquei furioso, apaguei as gravações que tinha de suas canções e procurei substituí-los. Amor morto, amor posto. Não permiti que ficassem na memória, fui ouvir Nélio e Espiga, com o “rap da lembrança”.
Nesta época, tínhamos, no Rio de Janeiro, duas ou três rádios com programas de Funk diários, o Funk era mídia e aparecia constantemente na Globo, no programa da Xuxa. Os MCs estavam sempre lá. E por essa exposição, uma vez perguntei para minha professora de português o motivo pelo qual em nossas aulas e provas jamais vimos nenhum traço do Funk. A resposta foi taxativa: “- Isso não é cultura”. Muitas foram as vezes em que ouvi isso. Até que internalizei. Em cada ambiente “sério” em que entrei e que frequentei, sempre diziam que o funk não tinha espaço por ser uma espécie de subcultura, algo inferior, coisa de favelado. E foi assim que fui me afastando do funk e me adaptando ao que era considerado alta cultura. Aliás, tudo era cultura: samba, rock, sertanejo, música religiosa, forró, menos o funk. Meu diálogo com minha professora se deu na quinta ou sexta série do ensino fundamental. No ensino médio, já não ouvia mais funk; na graduação em Letras, obviamente não ouvia nem um rapzinho para contar história. E assim fui me tornando um estudante exemplar. Sem perceber, eu não me afastava do funk, eu me afastava de mim.
No último período de minha graduação, obrigatoriamente tínhamos que cursar a disciplina “prática de Ensino”. Nesta disciplina prático-teórica, lemos Paulo Freire e sua concepção de ensino contextualizado, sua “palavramundo”. Lemos também Magda Soares, Marcos Bagno, dentre outros sociolinguistas que afirmam que o ensino de língua materna deve partir da experiência, do mundo, do capital simbólico trazido pelo corpo discente. Em suma, a bagagem do aluno não poderia ser extraviada.
Diferentemente do que se afirma nos meios acadêmicos, o meu estágio como/para professor mostrou que na prática a teoria é outra. A professora regente excluía o contexto, ensinava gramática de modo mecânico, não sabia o nome dos alunos, os tratava literalmente como números. Vale ressaltar que o estágio ocorreu em uma escola que tinha como público crianças moradoras do Complexo da Maré. Esquecer o contexto em que aquelas crianças estavam inseridas era só mais uma violência simbólica cometida em relação àqueles indivíduos já tão marginalizados pela sociedade. O ápice do meu descontentamento como estagiário-observador se deu em uma aula em que a professora apresentou uma canção do Chico Buarque para mostrar os elementos da comunicação. A aula e o material seriam perfeitos se respeitassem o contexto. As crianças tinham problemas sérios de leitura, o que inviabilizaria toda e qualquer possibilidade de apreensão de conceitos abstratos. Foi aí, e diante da minha iminente aula-teste (eu era obrigado a dar quatro aulas-teste antes de minha prova de aula), que reencontrei o Funk.
De modo ousado e contra a vontade da professora, ainda que ela tenha pseudamente consentido, fiz uma pequena e rápida pesquisa com os alunos. Duas perguntas em uma: - “Quem ouvia funk e quem tinha músicas de funk nos aparelhos de celular ou MP3?”. Dos 37 alunos do 5º ano, apenas 3 não tinham e nem ouviam funk, a não ser o funk gospel. A partir disso, montei minha primeira aula-teste. Os textos-base para a aula foram o “Rap do Silva” e “Dako é bom”, da Tati Quebra-barraco. A professora regente temia que a aula virasse um baile funk, o que inevitavelmente aconteceu. Os alunos disseram que o rap era chato e música de velho, embora um deles tenha dito que aquilo era um clássico e que, portanto, merecia respeito. Eles adoraram o funk da Tati. Fizemos a leitura das letras, expliquei para eles o jogo linguístico, a ambiguidade da segunda canção, o que acontece muito no forró e, de uma maneira geral, na música popular brasileira. E por isso, dizer que é pornográfico, que é indecente, é uma questão preconceituosa. Disse a eles que essas palavras se devem ao fato de o funk ser de onde é, e ser feito por quem o faz. Eles entenderam e gostaram. Depois... fizemos a leitura do “Rap do Silva”, a fim de realizarmos a comparação entre estilos e letras. Alguns mais avançados na compreensão e leitura do texto disseram que na favela é assim mesmo (como diz a letra). Na favela, ninguém é respeitado. Ali, todo mundo é Silva, pois pode “levar um tiro, quando sai para trabalhar, para se divertir, para estudar”. O objetivo da aula foi alcançado, pois os alunos perceberam que o funk também é protesto, também é voz de denúncia, perceberam no Funk que a vida dura na/da favela é um problema social.
Após essa aula de/com o Funk, nunca mais fui o mesmo. A emoção daquele encontro, daquela interação com a turma, que antes me jogava bolinha de papel, me chamava de X-9, por ser um corpo estranho, foram fundamentais para minha formação como professor, cargo que passei a exercer oficialmente (dou aulas em cursinhos comunitários desde 2001) em 2006. De lá pra cá, muita coisa mudou, fiz mestrado, doutorado, dei aula em universidade, fui aprovado em dois ou três concursos públicos, trabalhei em duas escolas do Estado. Hoje trampo em uma escola técnica da rede federal, em que tenho um projeto de literatura marginal (com enfoque nas produções da periferia: funk, rap, poesia e prosa). Embora muitas mudanças tenham acontecido, há algo que mudou quase nada: a marginalização do Funk.
O estilo musical – que "quando toca, ninguém fica parado" – ainda é estigmatizado, mesmo que tenha cartaz na novela das 9, mesmo que apareça diariamente em comerciais de TV, mesmo que faça participação especial nos programas televisivos. O Funk, mesmo que tenha sido elevado a patrimônio cultural, ainda é visto como algo menor. O Funk ainda é motivo de chacota em aulas de língua portuguesa ou em outras disciplinas que envolvem cultura. Enfim, o funk continua sendo visto, de modo óbvio por sua relação felizmente indissociável com quem o produz e em que local é produzido, como um subproduto cultural. E é por isso que continuo, em minhas aulas, tocando o Mc Marcinho; que, em meu material didático, continuo dedicando um espaço reservado e significativo para as composições do Cidinho e Doca, do Bob Run; que, em minhas atividades avaliativas, os Racionais aparecem como texto provocador e motivador. É necessário ter em mente que excluir o Funk é excluir o aluno que o ouve, que o faz. Sendo assim, enquanto não houver igualdade e respeito, não viveremos uma educação e uma sociedade justas. Pra finalizar, encerro com um dos melhores raps que já ouvi e ouso comparar com “Agoniza mas não morre”, pois personifico o funk (negro) que implora igualdade.

Eu só imploro a igualdade pra viver, doutor
No meu Brasil
Que o negro construiu
A injustiça vem do asfalto pra favela
Há discriminação à vera
Chegam em cartão postal
Em outdoor a burguesia nos revela
Que o pobre da favela tem instinto marginal
E o meu povo quando desce pro trabalho
Pede a Deus que o proteja
Dessa gente ilegal, doutor
Que nos maltrata e que finge não saber
Que a guerra na favela é um problema social

Um abraço a quem resiste e não tem vergonha de ser o que é. Não quero dizer que é necessário excluir ou esquecer outras manifestações culturais e musicais. Este não é o nosso desejo. O que está em voga aqui é o respeito a toda e qualquer manifestação cultural, à diversidade, ao estilo, ao gênero, ao ser humano e sua produção. É urgente abandonar a hipocrisia que assevera que somos um país multi ou pluricultural, quando, na verdade, o que vemos por aí é a homogeneização da cultura, da língua, do poder.

O narrador sou eu

Parceiro,
Não tente falar como um morador da Baixada Fluminense ou como um morador de favela. Não precisamos que falem por nós. A história é nossa. A vida é nossa. O preconceito que sofremos diariamente pelo CEP, pela cor de pele, pelo contracheque, pelo grau de escolaridade, pela orientação sexual, pelo gênero, pelo número de filhos, de irmãos, de parentes que temos, pela linguagem, pelo estilo musical, é algo que vivemos e sentimos na carne. Este preconceito não é teórico, ele é prático e é praticado por uma sociedade que nos hostiliza, que nos explora e nos esquece.
Aí, quando a violência simbólica sofrida durante séculos se concretiza a partir da violência física, surgem vários heróis da última semana, escritores canalhas, querendo, por meio de um senso comum risível, dizer como pensamos, como nos sentimos, como somos.
Meu irmão, quer saber o que penso? Me pergunta, me deixa falar. Colocar palavras na minha boca, invertendo construções e brigas sociais históricas, é fazer o que você e a corja que representa sempre fizeram, violentar o lado mais fraco da corrente.
A história é nossa. Deixa que a gente narra.

Tempo, amor e memória

A memória surpreende pela não confiabilidade. Geralmente, não recordamos o que desejamos e lembramos o que queremos esquecer. E nesse mistério humano tão complexo quanto o entendimento das divindades, ficamos, geralmente entre o sono e o sonho, com os apontamentos inconscientes na/da consciência.
No ir e vir da mente em busca do abraço morfético, me veio uma lembrança de um tempo em que o ceticismo era menor e em que, talvez, deus fosse mais presente. Durante cerca de 3 anos, participei de um coral que tinha por função principal animar as missas aos domingos pela manhã.
O grupo de cânticos religiosos era formado por pessoas de faixa etária bem acima da minha. Na verdade, o grupo era da “terceira idade”. Jovens, na idade, éramos apenas 6 ou 7. Eu e mais dois amigos (violão, baixo e bateria) e mais 3 meninas que cantavam. É claro que éramos seis, a oscilação se deu pela tentativa de evitar a referência novelística.
Ali, passei bons momentos e outros, nem tanto. A lembrança que povoou minha cabeça na última noite, infelizmente, está mais para o segundo grupo do que para o primeiro. Lembrei-me de um dos integrantes do coral e de sua dura luta pela vida diante de uma doença crônica.
Em um domingo, após a celebração da missa, todos os integrantes do coral foram lhe fazer uma visita. Ele morava em uma casa humilde, em cima de uma fábrica de pipas em que trabalhava. Para nossa surpresa, vivia sozinho e contava apenas com a solidariedade dos vizinhos. Nessa época, acredito eu, a fé começava a me abandonar ou eu passava a perceber que ter fé não era o meu forte, nem meu fraco.
Lembrei também que, por alguns instantes, fiquei sozinho a seu lado. Trocamos poucas palavras. Nunca fui muito bom com as palavras, ainda mais diante da morte, da doença ou de qualquer outro obstáculo da vida. As palavras faltam. O ouvido cuida para que olhos não externem a compreensão da ação inexorável do destino. Sendo assim, ajo como se não fosse, como se não pensasse, como se não existisse.
Entre uma ou outra palavra balbuciada, o senhor me perguntou por que eu estava ali, por que me preocupava com ele? Por que àquela hora da manhã eu não estava curtindo minha idade? Pensei por alguns instantes. Não sabia efetivamente o que dizer. Poderia dizer que era pela presença divina (sabia que não era). E de supetão, sem medir o impacto das palavras, disse que o que me levava até lá era o fato de sermos iguais: eu, ele e todos os nossos companheiros de canto.
Não sei que tipo de sensação estas palavras causaram. Contudo, descobri na insônia de ontem que me lembro de algumas palavras ditas por ele após minha resposta. – “Meu filho! Quando se vive só e se chega aos 70 e tantos, ter a certeza de que estaremos com deus é um detalhe. O que importa na vida é saber se a maneira como vivemos permitiu que deus estivesse conosco. E deus está aqui. E o que é deus? A juventude deve te fazer perguntar isso. Deus é a visita de jovens a um homem velho, doente e solitário. A visita a um homem velho e solitário é amor ao próximo, o mandamento máximo”.
As palavras ditas podem ter sido diferentes, mas o essencial delas está aí. Não sei quando a fé me abandonou... não tenho memória disso. No entanto, talvez tenha sido neste encontro que entendi e internalizei que o outro sou eu e que ainda que o amor partilhado entre os irmãos não seja divino, ele pode despertar sentimentos comuns, nos levar à descoberta da necessidade de luta por alguém além de nós. Fazer-se igual no canto de alegria ou no entendimento da morte é questão primordial para que tenhamos um mundo mais justo, sensível e fraterno.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Condicionais

E se eu fosse negra?
E se eu fosse mulher?
E se eu me chamasse Claudia?
E se eu fosse menino?
E se tivesse sonhos?
E se eu me chamasse Eduardo?
E se eu fosse pobre?
E se eu tivesse filhos?
E se eu me chamasse Amarildo?
E se eu tivesse fome?
E se eu não estudasse?
E se eu amasse?
E se eu vivesse?
O se só deixará de ser condicional, 
se houver o outro que sou eu, se assim eu me permitir.

Papo do menor

Eu acredito que ainda viverei 
num mundo onde não terei que provar a todo momento 
que sou inocente, que não sou traficante, 
que não é pelo fato 
de eu morar em um espaço pobre, 
por ser pobre, que mereço levar um tiro, 
ter minha família, sempre excluída, exposta. 
Sou pobre, sou humano. É óbvio, mas muitas vezes... 
Muitas vezes, é preciso dizer. 
Não atire em mim...
Eduque-me, me ame, 
me abrace.

Homo

Lá estava um corpo no chão...
braços abertos... não causou polêmica.
brincava com moda e bonecas... causou polêmica.
Era homossexual... causou polêmica.
A violência contra ele.. não causou polêmica.
A luta é necessária,
uma vez que se não há um deus para o Rafael,
pelo menos justiça deve haver.
Seu corpo já foi enterrado,
seu desejo violentado.
E sabe o que mais dói, Rafael?
É que tem muita gente vendo isso como castigo.
É que tem muita gente dizendo que é doença.
É que essa morte não é apenas uma morte,
Pois é uma violência contra o gênero, contra a identidade,
Contra os sonhos.
E nesse momento, Rafael, tem muita gente com medo de sonhar,
de se expressar, de ser o que é, porque a sociedade puritana não quer.
Rafael, um abraço!
E se existir um deus aí, onde você está, diz pra ele que grande parte dos brasileiros está todo dia batendo um prego diferente na cruz do filho dele.
Beijo, menino!
Vá em paz.